Partimos de Curaçao e depois de uma semana de navegação tranquila chegámos a Portolindo. Pelo caminho apanhámos o maior atum da história do El Caracol, um galha-a-ré de mais de 30 kilos. Acabou por ser o jantar de muitos barcos do ancoradouro, não temos frigorífico para tanto peixe!
Pouco tempo depois de termos chegado fomos apanhados pela tempestade tropical Otto, mesmo no fim da época dos furacões. Valeu-nos um susto a meio da noite... O El Caracol aguentou-se, mas os ventos e chuva fortes tiraram-nos da cama às 4 da manhã com o ferro a arrastar. Acabou por correr tudo bem e deu para ganhar pedalada. O pior aconteceu na baía vizinha de Portobello, onde encalharam ou foram destruídos quinze barcos., quase todos imediatamente saqueados pelos locais.
Depois de algumas consultas resolvemos aproveitar as óptimas condições da Panamarina para tirar o El Caracol da água, fazer a pintura do casco e a sempre necessária manutenção. O ambiente do estaleiro é muito familiar e amigável, foi como estar a trabalhar no quintal lá de casa. A semana passou a correr e até tivemos tempo de fazer projetos mais pequenos, como o restauro da prancha de SUP.
Com o barco a brilhar fomos passar o Natal ao arquipélago das San Blas, que se estende do Golfo de San Blas até à fronteira com a Colômbia e forma a provincia de Kuna Yala. São ilhas idílicas cobertas de coqueiros, rodeadas de águas cristalinas e habitadas pelos indíos Kuna.
Tivémos a oportunidade de conviver um pouco com este povo incrível, cheios de histórias e tradições muito próprias. Altura também para o reecontro com amigos de outros barcos, o regresso do Capitaine à caça submarina, aulas de windsurf para as crianças, muito paddle e mergulhos soberbos.
Das quase 400 ilhas e ilhotas existentes, apenas uma parte é habitada, normalmente por familías que se vão revezando. Algumas ficam um a três meses por ano, outras durante um ano. Quando estão a tomar conta da ilha estão a “trabalhar”. Por vezes cobram uma pequena quantia aos veleiros ancorados (nunca nos aconteceu), mas mantém as ilhas limpas e “arrumadas”. Há quase sempre um estendal de molas e pulseiras de missangas à venda.
As molas fazem parte do traje típico das mulheres kuna e são um trabalho de artesanato incrível. Pedaços de pano com cores diferentes sobrepostos em várias camadas, recortados e cosidos manualmente, às vezes também bordados com várias cores de linha. Os motivos são os mais variados, desde os animais e plantas do mar à floresta ou ainda divindades. São depois aplicados na parte da frente das camisolas das mulheres, dando o efeito de um corpete. As saias pelo joelho não são mais do que um pano florido, enrolados à volta da cintura. Para ornamentos recorrem a pulseiras de missangas que ocupam o antebraço e a canela. Entre as narinas algumas utilizam um brinco em ouro.
Durante o dia é comum ver os homens nas suas canoas escavadas diretamente de um tronco de árvore – cayuco – à pesca. Mais tarde é certinho que se aproximam dos veleiros para tentar vender lagostas, santolas e peixe. Outros são capazes de se deslocar algumas milhas a remar para nos virem vender molas ou côcos.
Até há pouco tempo os côcos serviam como moeda de troca e hoje em dia a Colômbia é reponsável pela importação da sua quase totalidade. Junto às ilhas mais habitadas há sempre um ou outro barco colombiano a vender bens como café, chocolate, alguns vegetais, ovos, roupas, panelas. Quando voltam para casa vão carregadinhos de côcos, quase a afundar (alguns afundam mesmo!). Em Nargana estivémos à conversa com a tripulação de um destes barcos, convidámo-los para conhecer o El Caracol e acabaram a fazer um brinde ao Cristiano Ronaldo.
Nargana é uma das ilhas mais habitadas, aliás quase não há coqueiros, apenas muitas casas e ruelas de terra batida, as tradições kuna quase não existem. É onde vivem os índios que optaram por um estilo de vida mais moderno. Fica na foz do Rio Diablo e nós precisávamos de água potável e de repôr mantimentos. Não estávamos à espera de grande coisa mas acabou por ser uma experiência incrível…
É no interior deste rio que muitas das ilhas se abastecem de água que é, depois, levada em jerricans. A água corre das montanhas e é uma delícia. Entrámos de dinghy e padle pela boca do rio, rodeados de mangal e cantos de pássaros, uma chuvinha a refrescar. A água castanha aos poucos foi-se tornando tão clara que só apetecia beber. Passámos por famílias kuna que enchiam jerricans de água e lavavam a roupa, nesta altura já remávamos no nosso barquinho e continuámos a subir até já não termos altura de água para passar.
Uma pequena praia fluvial serviu de apoio aos caracolitos, que rapidamente se transformaram em lavadeiras, com mergulhos de boca aberta à mistura para saciar a sede. Também nós lavámos a nossa roupa no rio. A cereja no topo do bolo foi termos encontrado no fundo do rio um prato de cerâmica de 1860. Na parte mais funda e clara do rio, lá estava ele intacto, no meio dos seixos. Um mergulho da Lia e lá veio ele à primeira. Mais um tesourinho para juntar à garrafa de gin da mesma época que encontrámos nas Bahamas.
Outra ilha que nos deliciou foi a Isla Tigre, recomendada por uma simpática índia. Aqui as tradições ainda são o que eram, trajes a preceito, celebrações e festas comemoradas à moda antiga, com a herança dos primeiros indíos ḱuna que vieram das altas montanhas da Colômbia e se instalaram por estas porções de terra no meio do mar.
A Comarca de Kuna Yala é extremamente organizada, tem as suas próprias leis e aqui o governo panamenho não manda nada. É uma sociedade matriarcal e muito sui generis, pois se numa família de rapazes o quinto filho fôr também um rapaz, este será sempre ensinado e educado como se tratasse de uma menina, o que tem gerado alguma homosexualidade e “mulheres” pouco bonitas.
Muitas coisas interessantes a acontecer por estas bandas… Claro que a melhor forma para conhecer este pequeno paraíso é mesmo de barco e até neste aspecto existe uma simbiose perfeita e estruturada entre os locais e os muitos velejadores que por aqui passam. É muito fácil alugar 1 ou 2 cabines do próprio barco aos inúmeros turistas que querem visitar estas ilhas, inclusivé através de sites como a airbnb. O apoio, em termos logísticos, é feito pelos kunas. São eles que trazem os “clientes” do continente até aos veleiros, fornecem a comida, água e combustível necessários à operação. Todos ganham com a parceria. É um conceito que está perfeitamente enraízado e que evita a presença de grandes cruzeiros, ferrys ou demasiados barcos a motor. Até agora o número de barcos não é excessivo, esperemos que continue assim e estas ilhas não se percam na maré da massificação.
Quanto a nós, ficámos fãs dos Cayos Holandeses e de Cocos Banderas!