O mês que antecedeu a partida foi dedicado à manutenção e logística. O Capitaine passou muitas horas dentro da casa das máquinas e afins, foram várias as idas às compras para que nada faltasse. O barco teve de ser reorganizado em termos de peso e bem preparado para tantos dias no mar.
Saímos de Puerto Armuelles, já quase na fronteira do Panamá com a Costa Rica, na manhã do dia 27 de Abril. No dia anterior tratámos da papelada e burocracias de saída do país. Um dos oficiais conhecia um Português e foi assim que tivémos o previlégio de conhecer o Jorge Freitas, residente no Panamá há muitos anos. Para a travessia ofereceu-nos uma saca de bananas e outra com mangas e laranjas, que souberam muito bem. Obrigada!
Fizemos muitos smoothies, saladas e bolos de manga
A primeira fase da travessia consistiu em chegar à linha do equador para depois apanhar os ventos dominantes e seguir a “auto-estrada” até às Ilhas Marquesas.
Os dois primeiros dias de viagem foram a motor e com o mar calmo, a Lia e o Becas fizeram trabalhos em madeira, cada um fez uma fingerboard e o Capitaine fez mais um teaser para a pesca. Depois veio o vento, chuva e ondulação de través, subimos as velas e ficámos em serviços mínimos durante 2 ou 3 dias.
Serrar, limar, polir…
De noite vários pássaros acompanhavam o El Caracol, muito espertos ficavam à espreita das pequenas lulas que eram atraídas pelas luzes de navegação para se banquetearem. Numa manhã tivémos um recorde de quase 20 lulinhas no deck, foi um entusiasmo preparar a refeição com a criançada.
Lulinhas à algarvia, acompanhadas por salada de manga, arroz de açafrão e batata e beterraba fritas
Para além das lulas a pesca foi muito produtiva, com vários dourados (mahi mahi), um bonito e dois atuns galha-à-ré. Também tivémos ataques de marlins enormes e lindos e um deles levou-nos o teaser garrafa, estes peixes são preciosos demais para se pescarem, só vê-los é uma alegria.
Ao quinto dia e sem nenhuma embarcação à vista ouvimos uma chamada de rádio VHF, não era para nós, mas quem chamava eram uns amigos do SV Estrella, que conhecemos em Curaçao. Fizémos uma festa e ficámos surpreendidos com a qualidade das comunicações, porque estavam bastante longe. Eles vinham da Costa Rica e voltámos a encontrá-los em Hiva-Oa, já nas Marquesas.
Quando o mar estava mais calmo, baixávamos as velas e aproveitávamos para tomar banho de mar, sempre muito atentos aos tubarões. Numa das vezes, por descuido, as linhas de pesca ficaram presas no hélice e lá foi o Capitaine resolver a situação, teve de mergulhar, desmontar o hélice, cortar as linhas e voltar a montar.
Operação resgate hélice de bombordo
Para além deste incidente, apanhámos também um susto ao embater em algo mole mas grande (talvez uma baleia), numa das noites, o barco parou de repente, slide no sofá com a desacelaração, mas quando o Capitaine foi com um foco para apurar a causa não viu nada que pudesse ter causado o impacto, faltavam apenas umas lascas na tinta do casco, mistérios...
Apesar dos 850 litros de água doce nos tanques e jerricans, esta foi sempre mililitricamente utilizada. Só para beber, cozinhar e enxaguar quer nos banhos quer na lavagem da loiça. Sempre que chovia recolhíamos água e assim chegámos a terra ainda com 400 litros.
Durante parte da viagem demos boleia a um booby, as gaivotas do Oceano Pacífico. Passou vários dias na proa do barco e saía de vez em quando para se alimentar, numa das vezes até achou a nossa isca lula apetecível e atirou-se a ela... claro que ficou preso com o anzol na asa, mas conseguimos libertá-lo e ficou bem.
Aqui o “nosso” booby já solto
Ao sétimo dia de travessia avistámos as Galápagos, as ilhas foram sendo invadidas por uma série de nuvens com ar ameaçador, pintalgadas por um arco-íris envergonhado e corrente marinha contra. Do lado oposto o sol pôs-se majestosamente. Uns reflexos na água chamaram-nos a atenção e apercebemo-nos da presença de um tubarão martelo.
O último pôr do sol do hemisfério norte
Passámos a linha do equador já de madrugada e envoltos em nevoeiro, numa calmaria suspeita e sempre motor. Tornámo-nos shellbacks, expressão utilizada no mundo náutico e que se refere aos marinheiros que passam a linha do equador num barco.
Quando o sol raiou o mar parecia um manto azul, a criançada acordou num frenesim e com as devidas oferendas ao grande Neptuno, comemorámos este momento pelo qual tanto esperámos.
Benvindos ao hemisfério sul
Passados uns minutos avistámos um grupo de focas e depois outro, até que resolvemos vê-las de mais perto. Baixámos a prancha de paddle e apesar das tentativas elas pareciam não estar agradadas com nossa presença e afastavam-se. Só a primeira investida correu muito bem, foi só o capitaine e esteve tão perto que conseguiu sentir a respiração delas. Mas quando vimos um tubarão já grandote e perto do barco, resolvemos subir a prancha e seguir viagem.
Aqui o Jorge e o Rodrigo (Becas) em pleno oceano com as focas a fugirem devagarinho
Mais tarde e bem ao longe fomos atraídos por um festival de dezenas de golfinhos a saltar no que parecia ser uma competeição de piruetas, tentámos chegar mais perto mas eles estavam muito focados na sua refeição e não nos ligaram nenhuma.
Os anos do Capitaine e da Almirante foram celebrados ao 11º e ao 16º dias, com bolo e refeições mais caprichadas. De prenda o Jorge recebeu uma avaria no piloto automático, na plotter, no GPS e no anemómetro e 3 mahi mahi, dos quais ficámos apenas com um, os outros dois eram muito pequenos e devolvemos ao mar para crescerem mais um bocadinho. Quanto às eletrónicas acabámos por desligar o GPS, a plotter e o piloto e anemómetro voltaram à vida, fizémos o resto da navegação com o OpenCPN no telefone andróid.
Em dias mais calmos fizémos muitas pulseiras em fio de algodão e missangas para dar nas pequenas vilas à criançada local. Tivémos várias sessões de jogos cartas (sueca, bisca, copas, crapot e paciências) e dominó, ler também foi uma constante, o Gonçalo conseguiu um feito inegualável que foi ler um livro de 400 páginas num dia! Quase conseguimos ver os filmes todos que temos no disco rígido. A dimensão lego também esteve ativa, bem como a prática de ukelelé e a confeção de origamis, mas a culinária foi o hobby que ganhou mais pontos.
A Lia trabalhar as pulseiras 330769
Dimensão lego em ação
Hamburguer vegetariano com pão e maionese caseiras
Durante todo o período da travessia vimos apenas 3 barcos, 2 de pesca industrial e um veleiro que contatámos no rádio VHF, uma famíla inglesa com 4 filhas a bordo de um Najad de 60 pés, um “bocado” mais rápido que o nosso… marcámos encontro em Fatu Hiva e aí fizémos as devidas apresentações.
Ao fim de três semanas as saudades de terra apertaram e as conversas divagaram para o que íriamos fazer quando voltássemos para Portugal, para onde queríamos ir morar, quantos priminhos novos na família íamos ter… o fim da travessia parecia estar longe e o Fernão Magalhães dentro de nós começou a esmorecer. Mas quando vimos a ilha de Fatu-Hiva muito ao longe na manhã do 29º dia de travessia gritámos de alegria, o pequeno almoço foram bolas de berlim à El Caracol, ao ínicio da tarde e com o entusiamo fugiu-nos um mega atum da linha de pesca, mas ao aproximar de terra conseguimos apanhar outro com cerca de 20kg.
Pequeno almoço no dia da chegada
Um grande atum à chegada
Ancorámos na Baía de Hanavave, também conhecida por Baía das Virgens, às 17h locais com um sorriso de orelha a orelha e de queixo caído com a beleza da paisagem. A pequena vila adivinhava-se à entrada do vale e junto ao mar uns blocos gigantes de pedra assumem-se como os guardiões do porto. Minutos depois o céu abriu-se sobre as nossas cabeças com chuva forte e vento com rajadas de 30 nós. Mas nada demoveu a nossa alegria, queríamos gritar ao mundo CONSEGUIMOS!!!!!!!!!
Depois de distribuir peixe pelos restantes barcos do ancoradouro, jantámos, fizémos as camas de lavado e de banho tomado adormecemoss embalados pelo som da chuva e leve movimento do barco, com aquele sentimento de uma grande etapa vencida.
El Caracol a descansar na Baía das Virgens