Em oposição às ilhas altas e de um verde luxuriante que constituem as Marquesas, as Tuamotu são ilhas muito baixas e lagoas de água com infinitos tons de azul. Antigos vulcões, agora submersos, deram origem às lagoas e na sua orla nasceu uma barreira de coral. Vistas do satélite parecem gemas preciosas.
A maior parte destas ilhas tem um ou dois passes, canal que permite o acesso das águas oceânicas, de espécies marinhas e de barcos ao interior da lagoa.
Se imaginarmos toda a água de uma lagoa a sair por um ou dois canais, conseguímos perceber a força da corrente que se forma nestas zonas. Pois assim é um passe, entradas e saídas nos atóis só na viragem de maré (slack water). Há ainda passagem de água através dos hoa nas alturas de maré alta, que são pequenos canais existentes ao longo do recife.
O El Caracol dentro da lagoa de Fakarava (foto de Ricardo Regal, drone)
Dentro das lagoas o perigo está sempre à espreita devido à quantidade de cabeços de coral (patate) que chegam à superfície. Para a navegação são obrigatórias boas condições de visibilidade e observação contínua.
As poucas vilas que existem nos diferentes motus (ilhas) subsistem da pesca, do comércio de pérolas e da kopra, actividade que consiste na recolha de côcos para a produção de óleo no Taiti. São para lá transportados nos barcos que fazem o abastecimento (quinzenal ou mensal) das povoações das ilhas principais. Vêem cheios de combustível, bens alimentares, encomendas, etc e vão cheios de sacas de côco, entre outras coisas.
O “cultivo” de pérolas na Polinésia Francesa está praticamente concentrado nas Tuamotu e nas Gambier, ainda não conseguimos visitar nenhuma destas quintas, esperamos fazê-lo no Arquipelago das Gambier. Mas já nos ofereceram um saquinho de pérolas irregulares e sem valor comercial, mas que nós adorámos...
Uma nacra polida com as pérolas oferecidas
Foi na parte sudeste deste arquipélago que se realizaram os testes nuclares, apesar de terem terminado em Janeiro de 1996, há ainda zonas interditas à navegação.
Desque que chegámos às Tuamotu, em Junho deste ano (2017), visitámos 5 motus – Makemo, Tahanea, Toau, Fakarava e Hao, todos magníficos e diferentes. Fakarava foi o que mais nos marcou, tivémos vários momentos únicos!
A Lia numa “piscina” de tubarões
Já há muito tempo que aqui queríamos vir, foi muito recomendado por vários amigos do mar. Grande parte da ilha é reserva biosfera da UNESCO e é muito conhecida no mundo do mergulho devido às condições naturais que reúne no passe Sul – Tumakohua, para observar tubarões. Vale muito a pena ver o documentário Le mystère mérou, que explica muito bem a vida marinha no passe e tem imagens deslumbrantes.
Passe Sul, junto à vila de Tetamanu (foto de Ricardo Regal, drone)
Em Fakarava passámos mais de dois meses, explorámos a ilha de Norte a Sul, a sua enorme lagoa é a segunda maior das Tuamotu.
Rotoava, a vila principal, está sittuada no Norte e é o único local onde existem 2 ou 3 supermercados, uma caixa multibanco (mas sem banco), uma escola, o posto dos correios, uma enfermaria, a câmara municipal, o aeroporto e pouco mais. É onde se encontra também a maioria da população.
Invariavelmente ancorámos em frente à igreja, de onde podíamos ouvir os cânticos ternos e melodiosos na hora da missa. Especialmente ao domingo era nítida a alegria com que as pessoas íam aparecendo, a maioria das mulheres traja vestido branco, chapéu de flores perfumadas ou flor por trás da orelha. As côres, a decoração de fiadas de búzios, conchas e nacras dão a esta igreja uma beleza especial.
Igreja de Rotava
Quase todo o tempo em que estivémos neste atol desfrutámos da companhia dos nossos amigos do catamarã Maia (francês e israelita) e dos veleiros Korrigan (francês) e L'Avenir (austríaco), todos com crianças a bordo. No total eram 8 (incluíndo os nossos) entre os 7 e os 15 anos. O que eles aprenderam e se divertiram juntos!
Os mais velhos no convívio rotineiro de final de dia
Passámos um mês no Sul, em Hirifa, meca do kitesurf. Pois, porque todos os nossos amigos e o nosso capitão são fanáticos de vento e não perdem uma opurtunidade para estarem no melhor spot. Aqui tiveram sorte vieram dois maramus (vento forte de sul) de seguida e foi uma maluqueira de kite e windsurf.
Ancoradouro em Hirifa
Kitebeach
Em Hirifa também tivémos o previlégio de conhecer o Gueck, um local (tipo Maui, do filme Moana) com o qual aprendemos várias receitas à base de côco, técnicas de sobrevivência no motu, e cultura e tradições locais.
Jantar de adultos a bordo do El Caracol, com o Gueck à direita a preparar caranguejo dos côcos
Os caranguejos dos côcos são uma iguaria que só existe nas Tuamotu, são muito apreciados pelos locais e têm uma dieta à base de côcos, procuram alimento durante a noite e descansam em buracos na terra durante o dia. A maior particularidade destes bichos é a força brutal que têm nas tenazes frontais, capazes de esmigalhar um dedo em segundos.
Caranguejo dos côcos
As lagostas também são muito boas, a técnica para as apanhar nos motus é muito específica e foi-nos ensinada pelo Gueck. Só existem no lado de fora da lagoa no recife e apenas durante a noite surgem à superfície para se alimentarem. Para as encontrar é preciso caminhar ao longo do recife, com água pelo joelhos, uma luz forte para as conseguirmos ver e muita motivação e paciência. A primeira ida às lagostas valeu ao Capitaine as 2 unhas dos dedões dos pés caídas e um mês de recuperação, horas e horas a caminhar na água com umas sandálias apertadas fizeram estragos…
É no recife, dentro de água que se apanham as lagostas à noite.
A caça submarina dentro da lagoa é uma aventura, os tubarões estão sempre por perto e até aconteceu devorarem um peixe do arpão antes do Jorge conseguir trazê-lo para o dinghy. Outro senão de comer peixe da lagoa é a presença de ciguatera, toxina libertada pelos corais que vai passando pela cadeia alimentar até chegar aos humanos. Quanto maior o peixe, maior a quantidade de toxina. Algumas espécies de garoupas são os peixes mais fiáveis e os que nós consumimos. Só quando navegamos entre ilhas é seguro pescar, mas ao contrário das Marquesas aqui é muito raro conseguirmos um peixe em mar aberto. A pesca intensiva dos barcos industriais é um problema sério e real.
O alimento disponível em maior quantidade é sem dúvida o côco. É utilizado na maior parte das receitas locais e tanto a água, como o leite e a farinha são já consumidos quase diariamente a bordo. Os pães feitos a partir do germinado de côco e os firi firi (espécie de fartura) são as guloseimas preferidas do El Caracol, super simples e saborosos, à base de farinha e leite de côco.
O Capitaine e o Gueck nos cozinhados. O Jorge a preparar a polpa para o leite de côco.
Firi firi antes de irem a fritar
Ainda no Sul mas mais para Oeste encontra-se a pequena vila de Tetamanu junto ao Passe de Tumakohua. Fomos lá com os amigos Ricardo e Inês que vieram de Portugal passar uma semana ao El Caracol. Na bagagem trouxeram um monte de pedidos e prendinhas e levaram muitas saudades. Obrigada por terem vindo, é sempre espetacular ter amigos a bordo!
O Ricardo e a Inês entretanto a bordo.
Esta zona de Fakarava tem um ecossistema particular devido às condições de forte corrente do passe, o recife de coral é lindíssimo, prolongando-se por uma parede sem fim ao longo das margens e a fauna presente é muito variada. Desde os peixinhos pequenos e coloridos até ao enorme peixe napoleão e diferentes espécies de tubarões.
A experiência de mergulhar no meio de dezenas de tubarões foi marcante, sobretudo porque foi um ponto de viragem na forma como encaramos estes bichos. Enquanto estivémos nas Bahamas vimos imensos, mas mal aparecia um mais perto, saía tudo da água, quase não tivémos contato porque eram muito grandes. Aqui todo um mundo se abriu. De facto há espećies que são inofensivas e aqui é particularmente nítido, apesar de patrulharem as águas em busca de alimento, não olham para os humanos como hipótese comestível. Estamos a falar das espécies mais abundantes no recife que são os de ponta preta, os de ponta branca e os cinzentos.
Assim que chegámos e nos instalámos numa bóia, vieram dar as boas vindas...
Debaixo do El Caracol peixinhos e tubarão cinzento
Mesmo nos outros motus sempre que fazemos snorkel há tubarões, mas em muito menor quantidade. Em qualquer ancoradouro das Tuamotu o mais natural é que apareçam e junto às margens há sempre tubarõezinhos à procura de alimento.
Mas mergulhar no Passe é um registo completamente diferente são centenas, uns mais no fundo, outros a meia água, passam por nós e continuam na sua vida. No ínicio estávamos mais reservados mas depois até as crianças os perseguiam na brincadeira.
O mergulho (snorkel) à deriva no Passe é muito divertido mas só é feito na altura de viragem da maré, quando esta começa a encher, assim a corrente leva-nos para dentro da lagoa e não para as águas oceânicas.
Os procedimentos são simples, a malta vai toda no dinghy bem para fora da lagoa e já equipados com máscara, barbatanas e fato, depois saltamos para a água e ao sabor da corrente vamos indo. Há sempre alguém a segurar o cabo do dinghy e é como estar dentro de um documentário da BBC Planet Earth, a visibilade é belíssima, tudo acontece à nossa frente.
Mergulho à deriva no Passe, O Jorge a segurar no cabo do dinghy.
O mergulho termina quando quisermos, uma vez que é nossa opção subir para o dinghy novamente. Assim que nos vamos aproximando de terra a parede de coral nas margens do passe é hipnotizante de tanta vida e não dá vontade de sair.
Jardim de coral na margem do passe.
Junto à vila há 3 baías com água pelo joelho onde circulam muitos tubarões à espera de encontrar um peixinho mais distraído, a baía que dá acesso ao restaurante lacustre é a que tem mais presenças, especialmente quando o cozinheiro está a preparar alguma refeição e vai lançando bocados de comida à água. Por mero acaso apanhámos um desses momentos, já a Cat, a Lia e o Rodrigo estavam na “piscina”, quando apareceu o cozinheiro… imediatamente surgiram tubarões de todos os lados. O chef só disse: “Se algum deles vos der uma marradinha é porque está na hora de sairem...” e assim foi, passados longos minutos um deles deu uma marradinha na lente da câmara, mas ninguem ficou com vontade de sair da água. Até que a segunda marradinha, desta vez na perna da Cat, foi assunto arrumado.
Na piscina com os tubarões ao redor.
O restaurante lacustre.
Na margem oposta do Passe há uma zona chamada Sable Rose onde é proibido ancorar, apenas é possível o acesso de dinghy. Aqui o aspeto das pequenas ilhas é completamente diferente, inumeras baías de areia rosada e fofa serpenteiam ao longo da lagoa, as águas transparentes e pouco profundas servem de berçário a várias espécies de peixes, incluindo tubarões.
Sable Rose
Há também uma bóia disponível para os veleiros junto a esta margem e no meio do Passe, que é qualquer coisa de fantástico, raramente está desocupada, a nossa sorte foi estarmos praticamente sozinhos pois a época turística está a acabar e começa a época dos ciclones e as Tuamotu não são as ilhas mais seguras para os velejadores nesta altura.
O El Caracol na bóia do Passe e o pessoal a ver os tubarões e peixes na popa.
Entre o Norte e o Sul, no lado Este da lagoa, ficámos muitas vezes em Pakokota um pequeno lodge familiar (um casal e uma filha de 2 anos) que além da sua simpatia oferecem vários serviços aos velejadores, entre os quais wifi grátis, uma raridade por estas bandas.
Pakokota, o Rodrigo e o Gonçalo vêm lá com a password do wifi.
Há vários ancoradouros possíveis é só uma questão de explorar, são km e km sem ninguém, é uma questão de olhar para a carta e ver se há boas condições para a fundear.
Ancoradoro inventado no lado Este (foto de Ricardo Regal, drone)
Em dias sem vento é possível explorar a parte Oeste da lagoa, que é sempre a mais exposta. Fomos dar com motus cheios de pássaros e ninhos com crias, não nos demorámos muito para não perturbar.
A Lia em modo exploratório no lado Oeste
Cria de booby.
E assim terminou a nossa passagem por Fakarava, se alguma vez pensarem vir para estes lados, este atol é daqueles a não perder!