Deixámos o Arquipélago das Gambier em Março de 2018, prontos para navegar as cerca de 600 milhas náuticas que nos separavam de Rapa Iti, a ilha da Polinésia Francesa situada mais a sul e que faz já parte do Arquipélago das Ilhas Austrais.
Rapa Iti é mais uma daquelas ilhas que não está no roteiro da maior parte dos velejadores, para além de condições meteorológicas muito temperamentais, fica fora das rotas mais batidas, não há outras ilhas pelo caminho, para se lá ir é mesmo porque se quer!
Dos poucos amigos velejadores que visitaram esta ilha todos se referiram como um local a não perder, estávamos curiosos...
Rapa Iti significa Rapa pequenina e foi assim denominada para se distinguir de Rapa Nui (Ilha da Páscoa). Não tem aeroporto, portanto o acesso só é possível de barco. Uma vez em cada dois meses vem um barco de abastecimento do Taiti com mantimentos (farinha, leite, massas, arroz, latas, pouca variedade de vegetais e frutas, etc), a população de 500 habitantes está dividida por duas vilas Ha’urei (a principal) e Area. São separadas pela baía de Ha’urei, local onde ancorámos a uma profundidade de 15m.
Baía de Ha’urei com a vila principal ao fundo.
Chegámos num início de tarde tranquilo, depois de uma boa velejada de 4 dias. Pelo caminho um belo wahoo serviu-nos para várias refeições e ainda sobrou para fazer umas latas de conserva.
O nosso wahoo a ir à faca pelo Chef e Capitaine Jorge.
Conserva de Wahoo caseira.
Depois de ancorados, um barco com um representante da vila de Area, o Octave, e um representante da vila de Ha’urei, o Alan, vieram dar-nos as boas vindas. Falaram um bocadinho da ilha, dos procedimentos a cumprir e responderam às nossas dezenas de perguntas, também comeram crepes com chocolate e uma toranja que ainda tínhamos das Gambier.
Ficámos a saber que o pão é feito em fornos de lenha comunitários que pudemos utilizar, que há criadores de galinhas e ovos frescos e uma pequena quinta onde são produzidos vegetais, sendo que a maior parte das casas tem a sua própria produção. A igreja protestante tem mais adeptos mas atua em perfeita harmonia com a igreja católica. Há apenas uma escola, não há caixa multibanco, mas há centro de saúde, uma estação meteorológica, duas ou três mercearias. Soubémos ainda que duas semanas antes de chegarmos ventos de mais de 60 nós tinham levantado telhados de várias casas... tudo normal por estas bandas.
Todos os carros que passavam perto de nós na pequena estrada de terra que circunda a baía nos apitaram e as pessoas acenavam. Os barcos que cruzavam a baía vinham perto do El Caracol para nos cumprimentar. Até o barco que faz o transporte das crianças da escola entre vilas veio, cheio de olhos a brilhar e sorrisos cativantes, dar-nos um olá. Ficámos imediatamente rendidos à gentileza e generosidade destas gentes.
Pela primeira vez na história de Rapa Iti estavam 4 veleiros ao mesmo tempo no ancoradouro, todos nos conhecíamos e tínhamos vindo juntos das Gambier (El Caracol – Portugal; Silverland – Holanda; Huaique – Brasil e Espanha; Shag 2 – França). Mais tarde juntou-se um outro catamaran, com uma jovem tripulação de 3 franceses de 21 anos.
Dois dias depois, bem cedinho pela manhã, a Cat e a Simone (do Huaique) tiveram a oportunidade de ajudar a Nenete a assar baguetes num dos fornos de lenha comunitários. Foram 50 baguetes colocadas dentro do forno envoltas em folha de uma planta local, estavam deliciosas.
Baguetes no forno de lenha.
Da parte da tarde, ainda com a Nenete aprendemos a fazer uma coroa de flores, sentadas na relva no seu quintal.
Simone, Nenete e Cat e as coroas de flores.
Tanto de um lado como do outro da baía a silhueta dos montes é incrível, em alguns pontos conseguem ver-se pequenas fortificações com centenas de anos (pré-colonização), mesmo estando praticamente cobertas por ervas.
Fizemos vários trilhos com as nossas crianças e as crianças locais. Sempre que nos deslocávamos a terra, normalmente à tarde, lá vinha um monte de crianças a correr e a saltar para nos acompanharem onde quer que fossemos.
Com as crianças no cais.
Todas juntas passaram várias tardes a “apanhar” enguias e camarões nos pequenos riachos que desciam das montanhas, pescaram junto ao cais ou simplesmente corriam na praça da igreja.
Quando subimos pela primeira vez a uma das fortificações tivémos 15 crianças a fazer-nos companhia. Insistiram que queriam vir connosco, o calor estava abrasador, a caminhada era longa, mas nada os demoveu.
No ínicio da subida, o Paul descalço deixou as havaianas para trás.
Todos em escadinha, o montinho ao fundo à esquerda é o forte.
Vista do ancoradouro, a caminho do topo.
E cá está uma das fortificações, já muito camuflada.
O descanso dos caminhantes.
De volta à vila que está lá muito ao fundo à direita, os barcos na baía mal se vêem.
Pelo caminho fomos apanhando e comendo goiabas chinesas selvagens. Todos os dias fizemos sumos deliciosos destes frutos vermelhos suculentos.
Num dia calmo demos a volta a Rapa com a tripulação do Silverland, todos a bordo do El Caracol. Visitamos várias enseadas, mas só em duas delas fomos a terra, grande parte da costa está rodeada por uma barreira de coral que impossibilita o acesso. Uma das baías é muito utilizada pelos locais para descanso de fim de semana, estava cheia de gente e não quisemos interferir.
Seguimos as recomendações do Mareco, pescador experienciado local, para apanhar lagosta, mas não vimos nenhuma... também tentámos pescar mas sem sucesso. Para compensar os passeios em terra foram lindos, com rios, cascatinhas e verde a perder de vista. A silhueta da ilha é linda de qualquer ponto de observação e ao final do dia, no regresso a Ha’urei, e já com o sol junto ao horizonte tivemos direito a um cenário mágico.
Norte da ilha de Rapa Iti.
Baía na costa Oeste.
Correm riachos em todas as vertentes, mesmo a calhar para nos refrescarmos com água doce.
Regressámos ao lusco-fusco maravilhados com tanta beleza.
Outra das originalidades de Rapa é o facto de terem uma rádio local com música muito simpática e com a particularidade de servir de meio para comunicar tudo o que se passa na ilha. Fomos mencionados várias vezes pelo locutor, não percebíamos o que diziam por ser no dialeto local, mas ouvíamos os nossos nomes. Das duas vezes que o Jorge foi à pesca com o Mareco lá se ouviu o nome dele na rádio...
O Domingo de Páscoa chegou e fomos convidados para assistir à missa e a comparecer ao respetivo banquete de almoço. A festa decorreu na pequena vila de Area. Todos os últimos domingos de cada mês e alternadamente entre as duas vilas há uma celebração especial em que a comunidade local oferece comida a quem quiser estar presente.
Por ser Domingo de Páscoa o evento foi mais concorrido. Os preparativos começaram dias antes, os homens pescaram mais peixe, mataram-se mais galinhas e porcos, as mulheres trabalharam o taro (um tubérculo do género do inhame) para fazer popoi - uma espécie de pão glutinoso que não é cozinhado e só é consumido um dia depois de feito para estar bem fermentado. O taro é o substituto da nossa batata e consumido praticamente em todas as refeições.
A Cat foi convidada a participar neste ritual de preparação do popoi, em que só as mulheres trabalham. Primeiro há que cozer o taro, de seguida vai sendo descascado à mão, depois é lavado e por fim esmigalhado numa bancada de pedra. Quando a massa já está bastante consistente e unida fica a descansar, junta-se um pouco de fermento, depois volta a bater-se só com a força de braços como se fosse massa de pão e quando atinge uma determinada consistência fica pronta e é embrulhada em folhas de rauti, como se fosse um saquinho e fica a repousar para o dia seguinte.
7 bancadas de pedra e respetivas pedras de bater a massa do taro.
Para a cerimónia vestimo-nos a preceito, mas com havaianas... de ténis ainda ficava mais ridículo! O Jorge até tinha uma havaiana de cada côr, é a nova moda do El Caracol, usar sandálias que ainda estão em boas condições e que encontramos nas praias junto às dezenas de plásticos.
Vestidos a rigor para o Domingo de Páscoa.
Na igreja fomos catapultados para um outro mundo quando as vozes dos homens e das mulheres se ergueram e começaram os cânticos alegres e penetrantes no dialeto local. Não tirávamos os olhos das dezenas de chapéus lindíssimos feitos à mão que ocupavam as cabeças de quase todas as mulheres.
O nível de detalhe é impressionante.
O almoço comunitário decorreu numa sala enorme ao lado da igreja, três filas de mesas e no topo um conjunto em U ocupavam praticamente o espaço todo da sala. Fomos convidados a sentar no topo, juntamente com as outras tripulações, o presidente da câmara e outros locais ilustres.
À esquerda um popoi embrulhado em folhas verdes.
Visitámos também a escola em Rapa Iti e fizemos uma breve apresentação sobre nós e a nossa viagem, foi na turma dos mais velhos (12 anos) e já os conhecíamos praticamente a todos. Depois de respondermos algumas perguntas, visitámos a biblioteca da escola, jogámos voleibol todos juntos e por fim um lanchinho onde trocámos iguarias. Nós levámos bolo de banana e a professora tinha feito uma espécie de sonhos de banana deliciosos. Também nos ofereceu um saco cheio de legumes da sua horta.
O El Caracol e o Silverland na escola a falar sobre a vida a bordo.
Jogo de voleibol no campo da escola.
As crianças mais novas vieram dar-nos desenhos feitos por elas, a maioria deles com barcos e bonequinhos que nos representavam.
Passagem pela biblioteca e um montinho de desenhos feitos pelas crianças.
Desenhos oferecidos pelas crianças mais novas.
Quando souberam de onde vínhamos vários locais nos falaram de uma portuguesa casada com um francês que já por várias vezes tinham vindo a Rapa, ficámos curiosos e fomos pedindo mais informações. Na visita à biblioteca fomos dar com alguns livros escritos por ele, Christian Ghasarian e um com ilustrações dela, Ana Margarida Palma Ghasarian.
Não pudemos deixar de partilhar a história linda que está por trás do livro que mais nos encantou. O Christian é antropólogo e nas primeiras vezes que visitou Rapa ficou hospedado em casa de um senhor que lhe contou várias lendas, tinham-lhe sido contadas pela sua avó. Como se tratavam de lendas antigas e a lingua de Rapa nunca antes tinha sido documentada, surgiu a ideia de compilar 12 lendas, como os 12 Parés (fortificações) de Rapa, e escrevê-las em francês e em Rapa. As ilustrações ficaram a cargo da Ana Margarida. E assim nasceu o livro "Légendes de Rapa Iti".
Mais tarde conseguimos chegar ao contato com a Ana Margarida, que nos contou como surgiu o livro. Contou-nos também que o sino da pequena capela católica de Rapa, situada junto à escola, veio de Portugal do mesmo local onde são feitos os sinos de Fátima, foram os católicos de Rapa que se juntaram para o comprar. Foi muito bom trocar impressões sobre Rapa Iti com alguém que por aqui também passou e sentiu a mesma afinidade com a magia que esta ilha emana.
O nosso livro preferido, com ilustrações de Ana Margarida Palma Ghasarian.
A escola em Rapa vai até aos 12 anos de idade, depois as crianças vão estudar para Tubuai, a ilha principal do Arquipélago das Austrais e por fim para o Taiti.
A passagem por Rapa foi curta, apenas 15 dias, mas a mais intensa de sempre. Aqui sentimos a verdadeira beleza, autenticidade, simplicidade e generosidade do que terá sido o povo da Polinésia Francesa há umas décadas atrás. Aqui sentimos a genuína hospitalidade por gentes que vêm de longe. Perguntaram-nos muitas coisas, ensinaram-nos outras tantas. Sempre prontos a ajudar e a dar o que podiam sem nunca pedirem nada em troca. Absolutamente fascinante.
Nas vésperas de partirmos aproveitámos para lavar roupa numa das torneiras disponíveis perto do cais, no dia anterior tínhamos pedido autorização. Assim que dispusemos alguns baldes no chão na vila de Area, apareceu a Zelma (responsável pela vila na ausência do Octave) a disponibilizar a sua máquina da roupa para que não tivéssemos tanto trabalho. Com a ajuda de dois rapazes lá veio a máquina de casa dela para a zona comunitária que dispõe de água e eletricidade e assim se fizeram 3 máquinas da roupa...
O Capitaine foi à pesca com o Mareco duas vezes sem nunca ter pescado nada de especial, apenas umas garoupas no dia em que fizeram caça submarina. O Mareco por várias vezes nos veio dar peixe fresquinho e foi convidado a ficar para mais uma conversinha e uns petiscos (ameijoas à bulhão pato!).
Ofereceram-nos abacates, limões, taro, bananas, espinafres selvagens, cenouras, alface, ... e no dia do banquete de Páscoa fomos “obrigados” a trazer para os barcos dois alguidares com um metro de diâmetro cheios de comida de sobras. É assim em Rapa, não se pode recusar nada.
Último dia em Rapa Iti.
Vista da entrada da baía de Ha'urei do topo de Area.